Chovia que deus a dava, um Verão tropical… Zeca, um pequeno Yorkshire, mais uma daquelas prendas de Natal, só porque sim, foi atirado da janela de um carro, sem qualquer emoção, em plena hora de ponta, na IC19, a estrada que liga Sintra a Lisboa.

O impacto do seu corpo no alcatrão foi tão doloroso, que todo ele se sentia a arder, já para não falar do quanto lhe doía a alma!

Zeca pensava na infinita ingratidão daqueles, que tinha na conta de família… e interrogou-se: Como é possível?!

Ainda assim, levantou-se com a dignidade cambaleante e encontrou forças, para se arrastar para a berma da estrada, onde se rendeu ao desmaio.

O sol abrasador secava-lhe a boca e a dor queimava-lhe toda a existência física e transcendental, enquanto pensava: “Vou morrer aqui!? Aquele grandíssimo filho da puta teve a coragem de ir de férias e descartar-me assim? Fui amigo, companheiro, cúmplice, até o ajudei a ver-se livre de tralhas, que só lhe ocupavam espaço na casa e agora espeta-me esta faca nas costas?!”

Ele tinha chegado àquela casa ainda bebé. Ganiu muito pela falta da mãe e dos irmãos, afinal era Natal e haviam-no separado da família, logo naquela altura, que os humanos dizem ser tempo de família! Mas Zeca conformou-se e abraçou a sua nova família, composta por dois humanos; um “ele” e uma “ela”, que passavam o tempo a trocar lambidelas.

De repente a “ela” ficou com uma bola na barriga e aí começaram as conversas sobre as alergias…Deixou de dormir com eles no quarto, da sala passou para a casa de banho e quando a bola desapareceu para dar lugar a um “elezinho” foi o princípio do fim.

Até inventaram, que o Zeca podia ser agressivo para a criancinha! Ele que sempre tinha sido tão lambisqueiro e carinhoso. Mesmo assim despacharam-no para a varanda, onde passou horas e dias  a fio…Muitas vezes sem água, nem comida. Apesar de tudo, sempre os recebeu com alegria e amor, abanicando a cauda.

Um belo dia levaram-no a passear de carro, um passeio mais longo do que o normal. E o que parecia ser muito bom, de repente transformou-se no pior momento da sua vida!

Foi largado ao Deus dará, no meio de uma estrada, em plena hora de ponta… E aceleraram tanto o carro, que a sua corrida desesperada não foi suficiente para acompanhar aquela família, que era a sua.

Afinal deixaram-no entregue à sua sorte! O pânico apoderou-se dele… Medo, angústia e a dor do abandono, em dose tripla, paralisaram-lhe o corpo e a alma! A alma sim!

 

Esperei por eles, mas nunca chegaram… photo by Graça Afonso

E veio um carro e outro, e mais outro até que se deu o embate inevitável…Ele sabia lá andar numa estrada em hora de ponta…

Neste estertor entre a agonia e a esperança, Zeca ainda acreditou, que se arrependessem e o viessem resgatar, mas não!

Os carros passavam indiferentes, a alta velocidade estremecendo o seu pequeno corpo dilacerado.  E ali ficou o resto do dia e da noite…

Com os dentes cerrados, Zeca abandonava-se à sua triste sorte, quando um anjo se aprontou no auxílio. Afinal ainda restava alguma compaixão à espécie humana…

Trazia um cobertor, aconchegou-o, ofereceu-lhe água, que o Zeca rejeitou, já quase não precisava de mais nada, a não ser de um pouco de amor intenso, que lhe valesse pela vida toda e o ajudasse naquele momento derradeiro.

E assim partiu o Zeca, para a quinta dimensão, ou lá o que seja, embalado pelo amor, que tanto falta à Humanidade, dando ao mundo o seu testemunho do flagelo, que é o abandono dos animais em Portugal.

Por Graça Afonso (rebelde ao acordo ortográfico)